Há um lugar em São Miguel, único na Europa, e foi fundado por uma mulher. Vai além de uma bebida. E, se prestarmos bem atenção, percebemos que é o resultado de uma história de coragem, inovação e perseverança, protagonizada por mulheres visionárias com uma missão clara: mudar o curso da história em Portugal, em especial o Chá Gorreana.
É na costa norte que um mar de folhas verdes nos preenche o campo de visão e nos convida a embarcar numa viagem sensorial, entre sabores e sentimentos, proporcionada pelo chá Gorreana.
Um novo horizonte nos Açores: a introdução do Chá Gorreana
Nas minhas férias de verão, optei, mais uma vez, por explorar o meu país e decidi voltar a uma ilha onde a vida corre de forma lenta e saborosa: São Miguel, nos Açores.
Conheci a ilha em 2015 e já lá fui três vezes. Contudo, desta vez a experiência foi ainda mais especial, pois, além de estar com alguém querido, apreciei o lugar como nunca antes. Falo-te, essencialmente, do lado feminino da ilha.
Sendo eu uma alma inquieta, não pude deixar de procurar a presença da mulher, a sua história e vivência em São Miguel.
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A planta do chá, conhecida como Camellia sinensis, tem as suas origens na China e foi trazida para a Europa pelos portugueses, inicialmente como uma bebida medicinal. Com o tempo, conquistou as elites e tornou-se a bebida favorita das classes mais altas. Hoje, é uma das bebidas mais consumidas no mundo.
Nos Açores, o chá foi introduzido após a crise da laranja, no final do século XIX, quando a ilha necessitava de novas culturas para substituir a produção de citrinos.
Embora os agricultores locais estivessem entusiasmados com as novas culturas, faltava-lhes o conhecimento técnico para o cultivo eficiente da planta. Para resolver essa questão, a Sociedade Promotora da Agricultura Micaelense contratou um mestre do chá chinês e o seu assistente para ensinar as técnicas às gentes de São Miguel.
A produção de chá prometia ser uma fonte de riqueza para a ilha. Contudo, devido a grandes ondas de migração e às mudanças nas leis de trabalho após 1914, apenas a Fábrica da Gorreana conseguiu manter a sua atividade contínua, desde 1883.
Ermelinda Gago da Câmara: uma mulher à frente do seu tempo
São Miguel, descoberto em 1432, tem uma longa história de resiliência e superação, com algumas figuras marcantes que desafiaram as convenções da sua época.
Uma visita guiada à Fábrica de Chá Gorreana transporta-nos por séculos de transformação e dedicação, com histórias de amor pela terra e por uma bebida acarinhada por gerações.
Em 1883, Ermelinda Gago da Câmara, a última morgada de São Miguel e herdeira de uma grande quinta, tomou a decisão de fundar uma fábrica de chá, produzindo o primeiro quilo da bebida. Uma mulher do século XIX, fundadora de uma fábrica e casada duas vezes — algo incomum na época —, Ermelinda era uma mulher de poder e influência.
Após 141 anos de funcionamento, a Fábrica de Chá Gorreana continua a ser gerida pela 5.ª geração da sua família, mantendo-se firme apesar das adversidades.
Após a sua morte, a gestão da fábrica passou para a sua neta, Angelina Gago da Câmara, que, com o seu marido, expandiu a plantação. Com um olhar inovador, o marido de Angelina construiu uma central hidroelétrica para fornecer energia à fábrica.
Com a morte do sucessor Fernando Hintze, a sua filha Margarida Hintze assumiu a responsabilidade de continuar o legado familiar. Hoje, a fábrica é gerida pelas irmãs Madalena e Sara Mota, filhas do antigo gestor Hermano Mota, representando a quinta geração da família descendente de Ermelinda.
A plantação, fundada por uma mulher visionária, abrange uma área de 37 hectares, com algumas plantas já centenárias, e produz cerca de 40 toneladas de chá por ano.
Uma visita centenária
Visitar a Fábrica de Chá Gorreana é uma experiência rica em descobertas, onde o tempo parece desacelerar. Percorrendo os seus corredores, entre máquinas antigas e o aroma de folhas secas, podemos observar de perto o processo de produção.
Desde o murchamento das folhas até à seleção manual e embalamento, cada etapa é um testemunho do compromisso com a qualidade. Curiosamente, o embalamento continua a ser feito manualmente por mulheres, cuja sabedoria e experiência refletem-se no sabor profundo da bebida.
Chá Gorreana: uma produção sustentável
O Chá Gorreana possui certificação biológica, sendo cultivado sem o uso de químicos. A localização privilegiada das plantações, afastada da poluição industrial, permite uma produção orgânica, onde pragas comuns não conseguem sobreviver.
Seguindo as tradições orientais, o chá preto, verde e oolong produzido na Gorreana mantêm as qualidades ancestrais há cinco gerações.
Um chá, uma mulher
As mulheres desempenham há séculos papéis fundamentais na produção do chá, desde o cultivo até ao processamento e embalamento.
Na Fábrica de Chá Gorreana, essa tradição mantém-se viva. Até 1970, a colheita era feita manualmente, empregando principalmente mulheres e crianças da região. Elas eram responsáveis não só pela colheita, mas também pela seleção e embalamento das folhas, uma prática que ainda hoje é destinada a mulheres, embora a colheita tenha passado a ser mecanizada.
O chá era também um sustento para muitas famílias, que levavam para casa as hastes da planta e preparavam a bebida que lhes fornecia energia para um dia inteiro de trabalho. Por ser uma bebida energética, as mulheres que trabalhavam do doméstico e tomavam conta dos seus filhos bebiam o chá de manhã e à noite.
O chá dos Açores não é apenas uma delícia para o paladar; é uma viagem pela história de uma mulher extraordinária, cujo legado ainda perdura. Ao saborear este chá, conectamo-nos com a visão e a força de Ermelinda Gago da Câmara, que transformou os Açores e deixou um marco permanente na história do chá na Europa.
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Gostavas de descobrir mais histórias fascinantes de mulheres que, tal como Ermelinda, mudaram o rumo da história?
Junta-te aos meus walking tours feministas em Lisboa e embarca numa jornada inspiradora pelas vozes femininas que moldaram o nosso passado e continuam a influenciar o presente.
Vem comigo redescobrir a cidade através do olhar empoderador das suas figuras históricas.
Com carinho,
Vanessa
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